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porquê "nero"?

  • Foto do escritor: Nero
    Nero
  • 2 de jul. de 2024
  • 8 min de leitura



1. o acto de nomear alguém ou alguma coisa é, ainda hoje, em algumas culturas, como que um ritual mágico: nomear é fazer existir. é o que acontece, por exemplo, entre muitas das nações indígenas do brasil que, quando seguem antigos ensinamentos guaranis, preservam memórias e costumes ancestrais. para muitas delas, um nome ou uma palavra terão o poder de destruir ou de salvar uma pessoa e, de alguma forma, é neles que se inscreverá a alma dessa mesma pessoa.

2. voltarei aos povos originários da américa do sul muito em breve, até porque "a trilogia do espírito", que iniciei no ano transacto com o Telúria e da qual publicarei, daqui a poucos meses, o segundo volume (com título ainda a anunciar)*, terminará com uma viagem muito peculiar à cosmogonia tupi-guarani.


3. não reflectirei sobre as coisas (ou sobre os animais ou sobre tudo aquilo que não é gente), porque me parece escusado; do que às pessoas diz respeito, diria que tem sido mais ou menos pacífico o costume de se aceitar, por defeito, o nome que nos deram à nascença. virão, em alguns casos, as alcunhas, os títulos, os cognomes, os pseudónimos. a história do direito poderá esclarecer a respeito das flutuações (no tempo e no espaço) que, contornando uma tradição comum a tantos povos, conferem a liberdade a cada pessoa de poder trocar de nome — do nome que as identifica. esta tradição pressupõe, portanto, que — ou por respeito ou por facilitismo ou por ausência de espírito crítico ou, quem sabe, por falta de urgência ou necessidade — os indivíduos aceitem os nomes que lhes são dados, tenham eles sido atribuídos com especial significado, tenham eles sido atribuídos considerando a etimologia significativa, tenham eles sido atribuídos aleatoriamente ou por moda.


4. assino-me, enquanto poeta, como "nero". esse não é o meu nome de todos os dias. não nasci poeta, ninguém nascerá. gosto do meu nome de todos os dias? o dito nome de baptismo, segundo a tradição judaico-cristã? não gosto especialmente, nunca gostei especialmente, ainda que a sua etimologia me tenda a dignificar. incomoda-me? não. lido bem com isso, não me angustia, ainda que não goste que me chamem em voz alta e em público por roberto; peculiaridades de ser.

escolher um outro nome para me assinar enquanto poeta não denunciará, por si só, uma relação conflituosa com o nome que os meus pais me deram. são o poeta e a pessoa pessoas diferentes? não entendo essa dissociação; apesar disso, tanto o poeta quanto a pessoa tenderão a resguardar um lado pessoal, que se não faz público, e por apresentar uma "persona" quando rodeados de gente. não vejo nisto especial complexidade; fá-lo-emos todos. nunca me fez sentido, contudo, assinar-me enquanto poeta pelo nome de todos os dias, como muitos fazem. a poesia, a literatura, é, se quisermos, a dimensão em que me concretizo e me cumpro plenamente. em que me visto e dispo das leituras que fiz e faço (dos livros, das pessoas, do mundo) e em que, intimamente, respiro e sou. neste espaço só meu, em que a criatividade se/me expande, não cabe um nome que me defina que não tenha sido escolhido por mim. assumir-me com um nome escolhido por outra pessoa seria uma intrusão demasiado violenta. esta pessoa-poeta que escolho ser existe a partir do momento em que a nomeio — e nomeio-a eu; não outrem.

(os dois nomes coexistirão, em contextos diferentes, na voz de pessoas diferentes. já aconteceu, no contexto errado, chamarem-me o nome desadequado. chega a ser-me invasivo e desconfortável, sinto-o quase como uma liberdade tomada que não foi concedida, como um desrespeito. para mim, é claro: cada um deve ser chamado pelo nome com que se apresenta e pelo qual deseja ser tratado. parece-me um cuidado elementar de apreço e de consideração. agora, naturalmente, não me posso ficar pela rigidez (nas expectativas e nas reacções): algumas pessoas não farão por mal; algumas arriscarão chamar-me pelo nome de todos os dias, apesar do contexto literário, para me mostrarem que pesquisaram sobre mim ou sobre os meus livros, para arriscarem alguma intimidade; outras, que sempre me conheceram pelo nome de todos os dias, nem se lembrarão de usar o meu novo nome (não aprecio vedetismos; não poderia nunca exigir-lhes tal mudança no trato). a gestão emocional que faço da nomeação que me endereçam, longe de ser complicada, será sempre coisa de hiper-sensíveis, ínfimo pormenor sem grande importância que só para quem diverge da neurotipia poderá, imagino, ter alguma razão de ser. enfim, a viagem à minha psique fica, se não fica sempre em tudo quanto escrevo, para outras leituras.)


5. assumirei, a quem me pergunte, que "nero" é pseudónimo, para agilizar a conversa e a comunicação. se fizer "ciência" sobre tudo, bem sei, nunca sairei do mesmo lugar. todavia, "nero" não me será bem um pseudónimo, uma vez que "pseudo", de origem grega, exprimirá sempre uma ideia de "falso". ora, não é por ser um nome escolhido por mim que é, necessariamente, um "nome falso"; pelo contrário: por ser de acordo com o meu gosto (ou porque gosto da sonoridade ou porque gosto do alcance semântico) é que deveria — ou deverá — ser entendido como um nome mais verdadeiro do que o anterior. esta é a verdade sobre como entendo o nome que escolhi para o meu eu-poeta.


6. o nome "nero" surgiu-me enquanto escrevia o meu primeiro livro, o poema épico e fantástico Oceano — O Reino das Águas (2021). ter-se-me-á imposto a necessidade de um novo nome, admito, pela tentação ou pela confusão de, no lugar de deus — criador de um universo tão detalhado, como são geralmente os da alta fantasia e como é o caso, inequívoco, do do Oceano —, estender a propriedade e o toque de tudo quanto criava, já num círculo meta-diegético, meta-linguístico, ao nome com que assinei o poema. um nome raro que, se não fosse português, soasse como se fosse. a dada altura, ponderei o nome filipo; não obstante, a desadequação etimológica rapidamente me demoveu. considerei, depois, um nome que pudesse ser de uma das personagens, obedecendo às mesmas regras fonéticas que basearam a criação e a selecção dos nomes do Oceano, sem consoantes oclusivas que não as nasais; não as únicas, mas as mais comuns nos idiomas e dialectos oceânicos. sabia que, desejavelmente, gostaria que me designasse um nome curto, com uma sonoridade bonita e que pudesse ser pronunciado debaixo de água (algures por entre a obsessão do processo criativo terei chegado a testá-lo). sabia, também, que queria um nome único — sem sobrenome, sem nome de família, como as personagens dos meus livros. através dessa opção, espero, realço a individualidade, o potencial de cada um para se cumprir, independentemente do meio em que nasça — ainda que não descure a falibilidade das meritocracias e o determinismo da reprodução social.

bem sei que os poetas reconhecidos por um único nome são-no com o tempo, talento e sorte. a escolha de um nome só seria abraçar o risco de ser entendido como pretensioso, como uma forma de me estar a "armar ao pingarelho", de quem se faz passar pelo que não é ou por quem não é. um problema que nunca será meu.

hoje em dia, muitos chamam-me — não por "nero", mas — por "poeta nero", imaginando que também eu decidi apresentar-me no facebook como "poeta". e isso poderá ser entendido como arrogância. desconhecem eles que a rede social me obriga a colocar um nome e um sobrenome, sem os quais abrir a conta não seria possível. ou seja, não fui por lá livre de me assumir com um só nome, pelo que acabei por escolher "poeta" como nome e "nero" como sobrenome, para que pudesse abrir a dita conta. a formulação "poeta nero" pegou; não porque, verdadeira ou intencionalmente, a impusesse. e com estas linhas me defendo dos ataques que, à data, (ainda) não me fizeram, pois a minha cabeça é isto, prevendo todos os cenários e mais alguns; e com estas picuinhices, quiçá astrológicas, me entretenho, quando não me aconteço em nada de mais importante.


7. circulam, na internet, as informações mais difíceis de comprovar. encontrar-se-á onde se associe "nero" a significações como "de águas límpidas", "de águas abundantes"; significações demasiado atrativas e irresistíveis para quem se propunha a lançar um épico chamado Oceano — O Reino das Águas. ao mesmo tempo, pelo italiano, "nero" significa "negro", o que marca o perfeito oposto. parece que do latim arcaico, de raízes que atrás no tempo se aprofundam, poderá ainda significar "homem". os leitores do Oceano perceberão rapidamente o alcance e o diálogo que uma assinatura como "nero" possibilitaria — ao mesmo tempo que, evidentemente, remeteria para a antiguidade clássica, lembrando nereu (deus marinho primitivo, que significa "nadar") e, por outro lado, o império romano e um imperador em específico, terrível e maldito, que terá amaldiçoado, por conta dos seus próprios actos e da sua má fama, o seu nome; motivo que, aliás, imagino, justificará, em parte, porque "nero" não frutificou, tanto quanto poderia, nas línguas românicas sequentes. pela sonoridade, teria tudo para ser um nome próprio masculino bastante recorrente no português.


8. escolher um nome maldito, pouco usado e ao qual a maioria das pessoas associa, imediatamente, o imperador tirano, seria atrair um karma indesejado e facilmente evitável. questionei-me se seria o mais acertado, ainda que defenda que os nomes, por si sós, por mais que convoquem memórias, não acarretam culpas ou, se quisermos, a alma doutros que se tenham servido deles. decidir-me por "nero" foi, portanto, uma escolha por minha conta e risco, acreditando que é possível recuperar o nome e, nesse caminho desafiante, transportar a sua força, musicalidade e beleza; atribuindo-lhe, quem sabe — e aqui, sim, presunção minha —, novas tonalidades e uma nova oportunidade.

é claro que, por mais controversas ou discutíveis que possam ser as fontes, tendo sido nero um incendiário, extravagante e responsável pelas execuções dos familiares, posso atribuir-lhe uma dimensão metafórica que me assenta bem: no estilo arrojado, nos temas provocatórios, nas opções literárias que tenderão a apagar a representação da família pela ausência de sobrenomes.

a ligação de "nero" a este nero extinguir-se-á por aqui. quantos joões e pedros, tiagos e ricardos não terão cometido reais atrocidades e, apesar disso, os nomes persistem-lhes, aparentemente ilesos. não o escolhi para que agrade ou para que desagrade. agrada-me a mim, primeiro que tudo, e isso basta-me. é o meu nome e o meu nome apenas.


9. escolher um novo nome, com uma glória condenada (e tão mais difícil e inalcancável do que "roberto"), constituirá, para todos os efeitos, a assumpção (ou a busca) de um caminho árduo e distinto — reflectirá, se tal é possível, as inclinações de um espírito que é o meu e que, por ser geralmente inadaptado e questionador, prima por desafiar o que limita e se institui, assumindo, nos interstícios, senão alguma unicidade, pelo menos alguns resquícios de loucura. talvez no espectro da loucura os dois neros encontrem alguma afinidade, ainda que um no sentido (documentado) do medo e da devastação e outro, pela arte e pela poesia, no sentido de construir algo que potencie a elevação.

independentemente dos significados que se procurem forjar, e sabendo da subjetividade do gosto, atrever-me-ia, finalmente, a deixar-vos a sós com a musicalidade da palavra "nero". às tantas, despido de todas as roupas que lhe criaram, é apenas uma junção de belos sons. a beleza... a beleza eleva-nos e devolve-nos ao tempo em que havia, na simples nomeação, a magia e o poder de fazer existir. esse é o poder da arte e esse é o poder da poesia.


nero

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(*) o qual verterá uma infusão de influências oriunda do nosso passado árabe e islâmico, das origens do islamismo à revisitação e reflexão histórica, religiosa, linguística e cultural sobre a presença muçulmana na península ibérica entre 711 e 1492. Do sufismo ao diálogo inter-religioso (cá resisto eu, com algum gosto e teimosia, ao acordo ortográfico), o livro desdobrar-se-á, como me te vindo a ser característico, em múltiplos horizontes.

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