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notas sobre ecopoesia

  • Foto do escritor: Nero
    Nero
  • 5 de jul. de 2024
  • 5 min de leitura

viver poderá significar — e, nas piores fases, resumir-se — a uma luta diária por mais tempo; o tempo que é sempre pouco, na cosmologia que, provavelmente, jamais extrairemos dos livros ou dos astros.


precisamos — sabemo-lo, pelo sufoco — de mais tempo com os nossos familiares e amigos, com os animais que nos têm, de mais tempo para descansar, para meditar, para ler e para viajar, para contemplar e sentir a natureza — para nos sentirmos vivos, sendo quem somos além de quem esperam que sejamos, além da roda mecânica que, todos os dias, forçamos, para que as contas se façam pagas.


as dificuldades, mais do que noticiadas na pele dos outros, são-nos sentidas: pulsam e contra-pulsam, nos rios que se nos afluem por entre os músculos. virão dias melhores, a esperança move-nos às cegas e, nessa escuridão, lá seguimos de atropelo em atropelo, sem que nos lembremos de olhar o céu. nesse movimento indigesto, que nos entorpece em refluxos incontíveis enquanto galáxias inteiras seguem as suas danças mais ou menos perpétuas, acabamos por não priorizar questões seguramente maiores.


as questões da ecologia e da sustentabilidade não serão mais uma preocupação, uma vez que as extinções, as alterações climáticas e as suas consequências devastadoras, no que ao equilíbrio da terra e dos seus ecossistemas diz respeito, são uma [trágica] realidade. os alertas, criticados por conspiracionistas, negacionistas e idiotas são, muitas vezes, abafados pela máquina hipócrita. o alarme e o medo adensam-se, o sufoco também, e o alheamento parecerá o caminho único de alguma sanidade.

receio que se possa trivializar, senão — em determinados contextos, até — esgotar, a causa ambientalista e o seu discurso sobre a urgência da consciência ecológica e sobre os perigos do consumo insustentável dos recursos do planeta. de tão embandeirado e desconectado de intenções verdadeira e necessariamente dialógicas e comprometidas, o risco de esvaziamento desse discurso é sério. outras questões parecerão sempre mais urgentes, por parte dos decisores políticos, sejam eles votantes ou votados. mas será bom que assim não seja, ou a casa seguirá sem os habitantes que somos.


enquanto isto, ainda haverá quem quebre a roda, quem pare o tempo: poetas, artistas. nestes, o discurso ecocrítico será mais do que uma nuvem. ter-se-lhes-á permeado o espírito, ao ponto de se equacionar um regresso — utópico? — às raízes, à perfeita comunhão do ser humano com a natureza. na designada era do antropoceno, onde se receia um cenário pós-apocalíptico e o suicídio, cada vez mais inevitável, do protagonista, tem florido uma corrente literária profundamente marcada pela ecologia, ainda que sem técnica ou metodologia distintivas, que repensa (desconstruindo e reconstruindo) a relação dos humanos com a natureza, dissemina a reflexão e a sensibilização ecológicas e, com elas, semeia a esperança da preservação da(s) espécie(s) e da sua casa, o planeta.


na poesia, dizemo-la ecopoesia. embora seja uma classificação, não apontará para uma gaveta em que se cerram, rigidamente, temas e possibilidades. à ecopoesia, aliás, se associam e metamorfoseiam, além da devastação ecológica, temas como a hospitalidade, a voz feminina, a descolonização e o pós-colonialismo, a alienação, o ecocentrismo, a ecoespiritualidade ou, até mesmo, a função ecologista inerente à própria poesia. a designação, parece-me, impor-se-á pela necessidade de atrair novos olhares e de analisar as suas razões e pertinência para a atualidade.


olhar para dentro e perceber-me poeta — mirando cada uma das minhas obras publicadas, transversalmente ou a fundo — é uma oportunidade para me assumir, fluente, nessa mesma corrente (esta assumpção faz-se a posteriori; não decidi mergulhar nesta ou naquela corrente. foi-me, se quisermos, natural e intrínseco — sinal dos tempos).


veja-se: Telúria (2023) denuncia uma humanidade que se destrói e alheia da natureza, quando só nela se poderá ressignificar. na primeira parte do livro, as referências à seca e a incêndios são mais do que muitas: E partem os bicos e os tenros ossos, não há poços, / e a sede que os seca ao alto Sol esvoaça e se vende / e a pele lhes resseca e a tristura só então s'entende (p. 11); Mas até lá esta chuva de cinzas, que m'entorpece. / Ardem-me os resquícios de folhas, que me penetram / e m'incendeiam. Desfaz-se a matéria morredoura. (p. 15). Não resultam estes versos senão de quem reside numa região fortemente fustigada por incêndios e pela seca e que, portanto, conhece esses problemas de que fala bem de perto. A esperança que sobressai dos versos, às tantas, é incapaz de considerar o humano como parte do futuro: Caem as cidades e também eu hei-de cair. Hás-de florir. / Tornarão um dia os pássaros. E eu neles, sem existir. (p. 45). Só o regresso à natureza e à relação de respeito e equilíbio natural me ressuscita o batimento cardíaco: Afago as ervas. / O rosto ao tronco encosto. / O pilar de mim. Assim. / Abraço a árvore, o ser. (p. 61).



se em Telúria recordo um ritual de afastamento e aproximação à natureza, em Oceano — O Reino das Águas (2021) o grito faz-se sonante e circular, ciente da importância vital dos oceanos: Quando o salvares, salvas-te a ti e salvas-nos a todos. (C1, CIV, p. 23). a seguinte passagem, na qual a fantasia se deixa contaminar pela realidade, é, a propósito, explícita quanto baste:


Mais guerra haverá, depois da guerra, pois a humana imundície se acumula

e pelo Mar as ilhas se formam e se repetem já, insalubres, os azares atraindo

e a doença e a morte. A uma dessas tóxicas manchas a corrente nos somou,

quando nos perdemos. Entre o lixo e os putrefactos despertei e me humilhei.

Vão-se os peixes, esfaimados, iludidos, e pela boca a morte engolem, traídos.

Enleado me via já, quando as grandes tartarugas apareceram e me puxaram,

coas fortes mandíbulas tudo tragando e dos tantos fios finalmente me livrando.


Falaram-me as bestas: “Agiganta-se, Homem, o manto que tudo cobre e ludibria.

Crescente é a ameaça e letal. Muitos são os que se finam, se ferem e se deformam.

Raros são os que se adaptam. Vagueia a epidemia, do estômago ao sangue e à mente. Sacrificam-se as algas, trituradoras, os vestígios a nada reduzindo, lentamente,

mas quantas dessas precisas seriam para a vitória tornar clara e evidente?”

Não, não há vitória, Erog, nem glória. Perdidas serão todas as batalhas que vierem,

a não ser que contra a Terra o Oceano se insurja, num duelo de enfermos.

Aquece o Mar que se degela, todos os males absorvendo, e purifica e regenera,

mas até quando? E se Arun vencer... do Oceano a graça ou a desgraça?

Já viste que os destruidores uns aos outros se sucedem, como deuses?

Distendem-se os círculos do mundo para uma espiral, que se não reverte.


(C4, CXXIII, pp. 326-327)



amanhã à noite [sábado, 06 de julho de 2024], pelas 22h30 e a convite da Traça Editora, integrarei o plenário antes que gaia caia [paranomásia lapidar], num painel que discutirá as relações entre arte e ecologia e no qual figurarão Adão Contreiras, Claudia Sil, cobramor, Rui Santos e Zé Eduardo. será na cidade de Faro, em pleno Açoteia Faro Rooftop Festival (na biblioteca municipal). seguramente que, por lá, as notas por aqui iniciadas se estenderão, quais raízes.


estão todos convidados; conto convosco e com as vossas reflexões.


nero

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