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Entrevista a Nero (6) — pelo investigador Francisco Simãozinho Martins

  • Outro
  • 16 de mar.
  • 6 min de leitura
Nero, fotografia de 2023, por ocasião do lançamento de Telúria.
Nero, fotografia de 2023, por ocasião do lançamento de Telúria.

Francisco Simãozinho Martins nasceu em Lisboa e partilha raízes com o Ribatejo. Depois de se licenciar em Línguas e Culturas, fixou o seu percurso em torno dos livros e da aprendizagem. Atualmente, é investigador, focando-se no começo do Período Moderno e no Renascimento Inglês. Além de se ocupar com pesquisas, aulas e traduções, publica ocasionalmente poesia original sob um outro nome.


Coloca as seguintes questões:


1. Com a chegada de Akbar — Lunário Poético duma Alma ainda Árabe, parece haver um tornar de cabeça na direção das raízes semíticas da cultura portuguesa e ibérica. Este “lunário” inclui nas suas musas a poesia frequentemente esquecida do Al-Andalus?

Este Akbar, com lançamento previsto para 5 de abril [de 2025], Dia Internacional da Consciência, fez-se numa viagem em busca da herança árabe na cultura ibérica, na língua, na cultura e na literatura portuguesas; na pesquisa e no estudo da História, não se ficando pela narrativa dos vencedores; antes procurando pela visão do outro, pela visão dos árabes — não como apropriação cultural, antes como resgate de uma identidade que também é minha e nossa, culturalmente falando, geneticamente falando.

É com essa legitimidade, não só no sentido de pertencer ou de descobrir como também no sentido de honrar, de questionar e de contribuir, de alguma forma, para um reconhecimento muitas vezes "branqueado", que o livro se fez. Pelo caminho, medita sobre a necessidade de deus, da fé; recua à fundação e expansão do islamismo, a um tempo de coexistência entre gentes de diferentes credos, com quem teríamos tanto a aprender, parece-me. Nas suas veredas, questiono-me: que vestígios dessa alma árabe ainda existirão em mim, uma vez que cresci em Silves e num Algarve em que tantas pedras, costumes e ecos árabes se mantêm?

O livro não é (apenas) sobre Silves, mas é-lhe dedicado. E a Ibn 'Ammar e a al'Mu'tamid e aos seus sopros partilhados. Nesse sentido, Akbar conversa com a sua poesia, com o nosso passado comum. De olhos postos no futuro, propõe, em quiasmo, o diálogo e o silêncio como instrumentos fundamentais ao convívio com o outro que é diferente, ao respeito por essa diferença e à valorização da pluralidade que será indissociável da natureza humana. Regressar às raízes, neste caso, foi apenas um modo de reafirmar que provimos todos de um tronco comum ou que, mais tarde ou mais cedo, nos teremos cruzado ou nos cruzaremos com os outros, sofrendo as mais variadas influências. Mas Akbar não é um tratado de História. Assumirá, aqui e ali, liberdades poéticas que sustentam um "e se?". É, acima de tudo, um livro de poesia que nunca deixará de ser, como qualquer outro escrito, uma expressão de um "eu" — que é meu.


2. Dizias numa entrevista que Oceano — O Reino das Águas foi completo (ou antes, liberto de um bloqueio criativo) após o teu regresso ao Algarve, “às raízes”, como caracterizaste. Onde encaixarias Akbar nesse trajeto poético-biográfico?


Ora bem, este Akbar — Lunário Poético duma Alma ainda Árabe começou a escrever-se no seguimento do Telúria, precisamente; Telúria que surgiu, como já assumi, numa espécie de descompressão depois de dezoito anos a escrever o Oceano. Neste sentido, este Akbar continuou uma exploração de temas que se não fizessem "debaixo de água" e um caminho espiritual que, perceberia mais tarde, só se concluiria com o quarto livro (que publicarei depois deste Akbar) e que põe fim àquela que denonimei por "Trilogia do Espírito".

O Akbar, como o Telúria, exploram as minhas raízes, de formas diferentes. Enquanto o Telúria canta o campo e a transcendência que encontro na natureza (lugar privilegiado da minha infância), num espaço que me é mais próximo e íntimo, Akbar alarga o círculo: vai a Silves, onde estudei na juventude, e parte daí para a redescoberta da História que considero mais ou menos obscurecida pela visão católica que terá impregnado a nossa historiografia: na História, sabemo-lo, a narrativa adoptada por uma determinada cultura tende a ser, apenas, a dos vencedores. Assim sendo, que partes da nossa herança árabe ainda florescem entre nós, apesar de tendermos a ignorá-las? Que voz posso assumir num coro que, ao longo dos séculos, tanto tem feito por não deixar calar este cântico árabe, ainda que com tão pouco eco?

Akbar assinala o momento em que, sem nunca sair de mim (porque tal nunca é possível na criação poética), passo de mim ao outro e procuro por outros entendimentos, por outras verdades, por outros olhares. É no estudo do outro que procuro descobrir novos sentidos e significados para/de mim. Só no conhecimento do outro poderemos conhecer-nos melhor; princípio básico da Antropologia. Acredito que os poemas deste Akbar proporcionarão reflexões mais ou menos aprofundadas sobre o outro e sobre a necessidade e razões da religião (ou das religiões).

Em sinédoque, este Akbar marca também o cruzamento entre uma escrita que parece enraizada na tradição mais arcaica da poesia portuguesa com uma expressão mais próxima da da poesia portuguesa contemporânea. Akbar, se não assume uma nova direção na minha poesia, desbravará chão ainda inexplorado entre as minhas publicações.


3. A natureza parece ser um tema incontornável na tua obra e entrevistas: é evidente em Oceano, em Telúria, e a escolha mais recente do termo “lunário” não deixa de escapar a essa veia. Dirias ser possível uma poética que não seja sensível aos elementos a seu redor?


Pois, já comentaram comigo, até pelas tonalidades das capas, que o Oceano é a água, Telúria é a terra e Akbar é o fogo. Essa leitura é legítima e fará sentido. Quem leu o Oceano sabe que, no entanto, apesar de a água ser por lá o elemento predominante, o Oceano é sobre os quatro elementos e, inclusive, sobre um quinto elemento que se propõe. Um dos versos finais do Oceano descortinava o que viria: "Enquanto há verde, há azul que o regue", da mesma forma que um dos versos iniciais do Telúria deixava adivinhar o que viria: "Nenhum fogo apaga um oceano". Os meus livros falam entre si, ainda mais do que possa parecer à primeira vista e isso é propositado, faz "parte do plano". Telúria, Akbar e o seguinte farão a transição do terreno para o etéreo. Neste Akbar, a espiritualidade eleva-se das nossas raízes coletivas para o plano dos astros e da lua, muito especificamente; lua que cobre a luz do fogo maior, o sol. A influência dos astros traduz-se na espitualidade que procuramos e materializa, na sua invisibilidade, a relação dos Homens com as ideias de deus.

Na poesia é tudo possível, ou quase tudo, pelo que haverá poetas insensíveis aos elementos do redor. Cada poeta faz a sua poesia, consoante as suas circunstâncias e os seus interesses. A minha tem-se feito assim, num tempo em que as questões ecológicas são gritantes. Os elementos são-me, diria, uma inevitabilidade e em obras de relativa complexidade como as que tenho publicado revelam-se, de alguma forma, o substrato para outras questões, igualmente profundas, que se interligam.


4. Ainda sobre a natureza, Caeiro famosamente escrevia “Sou mesmo o primeiro poeta que se lembrou que a Natureza existe”. Dirias que a natureza é uma gnose arcana que precisa de ser interpretada, ou uma companheira na comunhão poética?


Ambas. A natureza, mais do que "uma gnose arcana que precisa de ser interpretada", é a nossa primeira e derradeira divindade. Procurar entendê-la, respeitá-la, honrá-la ou preservá-la é o que nos religa verdadeiramente, o que nos poderá assegurar a eternidade, o que nos reconecta connosco próprios, curando-nos de todos os males. A natureza não é apenas a companheira na comunhão poética, ela espelha a comunhão poética, ela é, ela própria, a comunhão poética maior. Não desenvolverei, pois não me quero antecipar ao próximo livro.

Caeiro não foi seguramente o primeiro (despir o ego será comungar, verdadeiramente, com o todo), mas talvez tenha sido o poeta português, assumindo o jogo heteronímico, que melhor nos tenha falado (e com maior clareza de espírito) do âmago de um fruto ou do cerne de uma árvore.


5. Como a lua, o poeta também se recria? Se sim, dirias que essa mutabilidade é sincrónica (visível nos poemas agrupados em livros e volumes), ou diacrónica (notável na retrospetiva, nas comparações com publicações passadas)?

Um mau poeta não se recriará: não só canta sempre o mesmo como se serve do que os outros já cantaram. Tudo é uma reciclagem, é certo, mas exercícios há que não se servem de alma própria, apenas da alma dos outros. Por isso, haverá sempre poesia estéril, má poesia a que muitos não ousarão chamar poesia. É possível que vivamos num tempo de grande esterelidade: a democratização do ensino permitiu que muita gente saiba ler e escrever e que publique sobre a urgência de ser, sem que dos seus poemas nasçam quaisquer frutos. Não falemos sequer das produções da Inteligência Artificial.

Os melhores poetas, como a lua, recriar-se-ão em círculos potencialmente infinitos. Essa mutabilidade, sincrónica e diacrónica, existe porque o poeta, como a língua, é um organismo vivo. Capaz do pensamento, da criação, da recriação — toda a criação é uma recriação —, fazer poemas é como brincar aos deuses. A mutabilidade, contudo, é característica dos que vivem, por si próprios ou à sombra dos outros. A mutabilidade que, como tantas coisas, se mede num espectro. Jamais se compararão os limites dos criadores e os das criaturas.


Agradeço-te, Francisco, a excelência do questionário. Só as melhores questões potenciarão as mais interessantes respostas. Se estas não o forem para quem as lê, que saibas que me motivaram um estimulante exercício.



Instagram de Francisco Simãozinho Martins: @frnciscsmrtins

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