Entrevista a Nero (5) — pela professora e autora Helena Vieira
- Outro
- 17 de fev.
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Helena Vieira nasceu a 11 de dezembro de 1972, em Angola. Retornou, com os seus pais e irmã, quando tinha dois anos e passou os restantes anos da infância na pequena aldeia de Torres, no concelho de Trancoso, onde aprendeu o valor das pequenas coisas, que serve de mote à sua primeira publicação Por ti, estrelinha!. É mãe de três filhos e professora do 2.º ciclo de Português e História e Geografia de Portugal, na E. B. 2, 3 Jacinto Correia, em Lagoa (Algarve) e contar histórias, para além de fazer parte do seu dia a dia, é uma paixão.
Coloca as seguintes questões — sendo que com elas gostaria de explorar a relação de Nero com as palavras (que lhe parece ser muito intensa), a importância e o papel da poesia na sociedade e a relação entre a poesia e a docência, uma vez que Nero, além de poeta, exerce a docência.
1 — A leitura dos teus poemas denota uma relação muito próxima com as palavras, com o seu signo linguístico. Consideras-te um apaixonado pelas palavras? O que mais te agrada nelas? Qual a tua relação com a própria ideia de palavra? Não sofro com as palavras, pelas palavras. É com elas, por elas e nelas que me cumpro, que me concretizo e que, de alguma forma, me realizo.
Durante muito tempo, na infância, a dificuldade em expressar-me impossibilitava-me de ser melhor compreendido pelos outros. E vezes houve em que chegou a ser angustiante. Ser mal-interpretado e ter dificuldade na expressão perturba o desenvolvimento. Foi, por isso, desde cedo, uma luta comigo próprio, no sentido da superação. A luta pela expressão, muito antes de objetivos literários, significou, para mim, uma necessidade fundamental ao convívio, à integração, à aceitação. Talvez por isso, também, a minha relação com as palavras cresceu num elo apertado; a determinado ponto, ter-nos-emos fundido, a palavra e eu.
Ao mesmo tempo que a palavra me propicia e enforma o pensamento, concretiza-me na pessoa que ficará de mim nos versos e nas páginas que escrevo. A expressão pela palavra tornou-se (não sei se) um vício, um prazer. Brincar, trabalhar com as palavras tornou-se fluido como a água de um rio, de um rio que dá para o oceano. O Oceano — O Reino das Águas, o meu primeiro livro, concretiza e simboliza essa viagem, ao mesmo que inaugura o meu percurso na publicação.
Hoje, despacho todas as tarefas da minha vida para que tenha tempo livre para me encontrar a sós com as palavras. Para criar. É nelas que me perco, que me encontro e reencontro — como sei que sou. E, às vezes, como não sabia que era. Fora as tantas outras vezes em que, por elas, vou des-sabendo, de mim e do mundo.
2 — Li, numa entrevista tua, que consideras que “Do poeta é a esperança”. Ao lê-la, pensei no papel da poesia na sociedade e no papel do poeta, que, para mim, é um agente de transformação social. Na tua opinião, quais os valores que a poesia pode transmitir à sociedade? Para que serve, afinal, a poesia e qual o seu lugar no mundo de hoje, um mundo cada vez mais dominado pela tecnologia? Que valores pode transmitir? Poderá todos, os positivos e o seu contrário; aqueles que o poeta intencionalmente transmite e aqueloutros que são lidos consoante as mais variadas interpretações dos leitores, indo ou não ao encontro do desejo inicial. A poesia servirá para tudo, para nada e para tudo aquilo que está no meio — "meio" que, segura e precisamente por isso, por ser "meio", será, suponho, mais interessante do que qualquer pólo por si só.
Para mim, a boa poesia possibilitará abrandar a voracidade do tempo, obrigar-nos-á a parar, a refletir, a meditar, a saborear, a ver o mundo com olhos renovados. Perante a velocidade, a fugacidade e a efemeridade dos nossos dias, esse poder será, eu diria, mais urgente do que nunca. Nesse sentido, reside na poesia (a criação) e no poeta (o criador) a esperança de semear um mundo melhor. Será essa a função de qualquer arte maior. Isto digo eu, que tenho esta visão da arte. Haverá quem a considere agente de destruição. E não descordarei, categoricamente; porque o faria? Entre a construção e a destruição, também haverá um "meio".
A tecnologia não é, necessariamente, uma vilã. Também pode "humanizar". Tudo dependerá do que fizermos com ela e do que permitirmos que ela faça connosco. Na verdade, o ser humano tem tantos defeitos que chega a ser incompreensível entender o sentido do verbo "humanizar" como algo positivo. O domínio da estupidez ou da hipocrisia, por exemplo, preocupa-me bem mais do que o da tecnologia. Até porque... a estupidez pode dominar a tecnologia. Sabemo-lo bem.
3 — Se a Humanidade, um dia, perdesse a capacidade de criar poesia, o que isso significaria para nós? Lutarias contra um fim anunciado da poesia? Até onde estarias disposto a ir para defender a poesia?
A poesia como a entendo é um acto de liberdade. Seria difícil imaginar-me desprovido de pensamento, que é, por sua vez, indissociável das palavras. O pensamento criativo levaria à poesia, de forma natural. Não admira a antiguidade desta arte. Creio-a, inclusive, indissociável do ser humano como o conhecemos, ou seja, enquanto ser pensante. Neste sentido, imaginar o fim da poesia seria imaginar o fim do Homem. Caso a proibissem, enquanto expressão artística, seria outra história. Uma só voz valerá muito pouco na defesa seja do que for, mas imagino que, nessas circunstâncias, não defendê-la seria trair a minha própria natureza. O simples acto de respirar seria uma forma de luta.
4 — És poeta e professor, o que, na minha opinião, é uma combinação fantástica. A tua experiência como poeta influencia a forma como abordas a poesia em sala de aula? Achas que a poesia se ensina, ou se insinua? Porventura. Não saberei dizer-te. Talvez alguns dos meus alunos consigam responder-te. Dir-te-ei o seguinte: tirar um curso de língua ou de linguística torna um indivíduo, necessariamente, um melhor escritor? Não estou certo disso. Tenho inclusive muitas dúvidas acerca disso. Tirei o curso de Língua Portuguesa porque queria escrever melhor, mas por pouco o curso não me tornou, a alguém com a minha personalidade perfeccionista, incapaz de escrever (literariamente falando); tal se tornou a obsessão com a busca da "palavra perfeita" ou pela combinação perfeita de palavras (uma ilusão, entenda-se). Da mesma forma, mas em sentido inverso, ser poeta faz de mim um melhor professor de língua ou de literatura? Também não estou certo disso.
Acredito, talvez, que possa ter um olhar ou uma sensibilidade diferente, aqui e ali. Noto que os alunos nutrem bastante curiosidade pelos meus livros e pelo que faço e talvez isso lhes permita um contacto diferente com a literatura e com os livros. Talvez. Naturalmente, por conhecer minimamente o meio literário e a arte de escrever livros, há abordagens que faço e que outros docentes não terão. Mas todos nós temos as nossas experiências e elas acrescentam-nos de diferentes formas.
A poesia ensinar-se-á ou não a saberia. Não terei nascido a saber compor versos. Se se aprende, também se ensina. Agora, claro, nem todo o ensino é ensino direto. Talvez se ensine formas de gostar, critérios, sentimentos e valores. Os textos têm isso tudo com eles e nós também. O David Hume falou muito bem disso e, a muitos níveis, o ensaio dele mantém-se muito atual. A poesia ensina-se, o gosto pela poesia e pela arte idem e dizer que não serve para nada é discurso que já expirou de prazo.
Serei poeta, antes de professor. Mas a combinação faz-me muito feliz.
Instagram da autora Helena Vieira: @helenasantosvieira

Adorei a entrevista. Foi muito inteligente e esclarecedora.
Gostei de saber como foi o encontro do Nero com as palavras, a poesia e como o Roberto/Nero a ensina a Língua e Literatura Portuguesas, bem como pensa que os alunos são os seus melhores avaliadores.
A poesia ensina. A poesia salva.