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Entrevista a Nero (2) — pelo linguista e tradutor Moisés Pampim

  • Foto do escritor: Nero
    Nero
  • 21 de jul. de 2024
  • 8 min de leitura

Atualizado: 19 de jan.

Nero em apresentação do livro Telúria, ladeado por Irene Ferreira (à esquerda) e Otília Vieira (à direita).


Moisés Pampim nasceu no Alentejo, embora a sua infância e adolescência tenham sido inteiramente passadas algures no Nordeste Transmontano. Abraçou o estudo científico da Linguagem, licenciando-se em Ciências da Linguagem e especializando-se, já no Mestrado, em Linguística Portuguesa; trabalhou também como investigador no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Já adulto e pelas vicissitudes da vida, retornou ao Nordeste de Portugal. À data, dedica-se, por um lado, ao ramo da Tradução & Revisão e, por outro, ao Alojamento Local.


Seguidor de Nero nas redes sociais, coloca-lhe as seguintes questões:



(i) «[...] a obra de um grande músico era inseparável do seu destino.»* Achas que o mesmo se pode aplicar à (tua) escrita?


Porei de parte a questão da crença ou não no destino enquanto força superior, capaz de definir ou regular o caminho de alguém. Aquela minha passagem do Oceano "Escreve o acaso o destino de todas as coisas", a propósito, já aponta para o quão sensível, se não mesmo nuclear, me é a questão. Ora, a entender a tua citação não num sentido restrito, mas num sentido metafórico — entendendo o destino, se quisermos, como o próprio caminho — diria que a minha resposta à tua questão não tem como não ser afirmativa.

Imaginando que é na música que o músico se cumpre, será igualmente na escrita que o escritor se concretiza ou na poesia que o poeta acontece. Só a poesia — tanto a escrita como, noutro nível, a sua publicação — me realizaram enquanto poeta e enquanto Homem como, muito provavelmente, nenhuma outra coisa na minha vida. Nem todos nós descobriremos, infelizmente, qual é a nossa "vocação"; talvez não deva utilizar aqui a palavra "vocação", não vá correr o risco de, num exercício de semelhante literalidade como aquele que enderecei anteriormente à palavra "destino", o texto desta minha resposta se desvie para uma conotação demasiadamente religiosa ou mais ou menos esotérica. Recomeço: nem todos nós descobriremos, infelizmente, qual é o nosso talento — aquilo em que somos bons ou aquilo em que nos julgamos bons o suficiente ao ponto de nos trazer alguma ou considerável realização. Nesse sentido, terei tido a sorte ou o privilégio de me saber, de alguma forma, dos sons, das letras e das palavras. Mais tarde, dos versos. Por isso, penso que a poesia, na minha vida e dado o meu percurso e as minhas circunstâncias, foi uma inevitabilidade.

Será possível, naturalmente, falar de mim sem me referir enquanto poeta e sem me referir aos meus poemas, seguro de que, ao fazê-lo, estarei a omitir uma parte significativa daquilo que me define.



(ii) «Dizem que não devemos voltar aos sítios onde já fomos felizes.» Face a uma ou outra entrevista tua que tive a oportunidade de ler, sentes que te é mais natural escrever no sítio para onde voltaste? Há sequer algum sítio onde a escrita te brote mais, digamos, facilmente?


Mostras ser, de facto, um seguidor atento. A tua questão prende-se com o facto de já ter referido em entrevistas anteriores que o grande bloqueio criativo que tive durante a escrita do Oceano — O Reino das Águas se desfez com o meu regresso ao Algarve, após vários anos a viver na Grande Lisboa. Como terei dito nessas mesmas entrevistas, com o facto de ter voltado aos mesmos ares, à mesma luz, não em par da mesma janela, mas em par de uma outra igualmente luminosa, virada a sul. Porventura, num período de grande tranquilidade espiritual e de significativa estabilidade emocional, é certo, mas sobretudo por, de algum modo, me ter reencontrado no regresso à terra e às raízes. A verdade é que foi nesse mesmo escritório (o mesmo donde agora te respondo — em noite de lua cheia e de cintilante estridulação) que terminei o Oceano, que escrevi o Telúria e mais uns quantos livros que virei a publicar entretanto; haja saúde. Posso assegurar-te que este santuário no meio do campo, entre silêncios, às vezes gatos e na certeza do afecto pela casa é. seguramente, o sítio no qual mais escrevo, no qual mais fluo entre pensamentos criativos, entre vocalizações mentais de palavras e de versos — onde trabalho, com o cinzel da mente e do coração, cada estrofe. Foi, durante alguns anos, o único local onde consegui escrever. Todavia, a ser enguiço. já o quebrei. Já tenho escrito poemas noutros espaços e recantos, alguns até bem públicos. Serão poemas que já pertencem mais ao desassossego do que ao sossego, quero crer. Poemas que não serão para ser publicados já.

Voltemos aonde fomos felizes. Em quantos poemas não fui feliz? É sempre um prazer (muitas vezes, redobrado) regressar a certos poemas.



(iii) A certa altura, escrevi-te simplesmente que “um poeta finge que finge", um comentário com o qual, se bem me lembro, concordaste. Que comentário mais aprofundado tecerias face à expressão que usei?


O intertexto é óbvio. Fazes alusão ao "Autopsicografia" do Fernando Pessoa e àquele seu verso icónico "O poeta é um fingidor". O poeta finge porque será capaz de transformar a dor que sente numa segunda da qual falam os versos, que nunca será a mesma dor, sabemos, sentida ou entendida, de alguma forma, por quem lê. Recordo-me vagamente de termos falado nisso (já lá vão, entretanto, uns bons anos a trocar comentários pela rede social).

Na verdade, vamos lá ver, haverá de tudo quando se escreve um poema. Haverá a escrita mais emocional, menos racionalizada — mais direta, por isso, ao coração. Haverá uma outra mais mental, mais refletida (o que não fará dela, necessariamente, menos pura). As emoções, os sentimentos passarão sempre pelo crivo da mente, da consciência. Nem sempre, lembramo-lo desde o tempo da escola, a voz do sujeito poético coincide com a do autor, com a do poeta, propriamente. Poderá haver uma simulação, uma ficção ou uma ficcionação — enfim, dimensões que fazem parte do jogo representativo e literário.

Agora, se bem me recordo, dizíamos que até quando fingia/simulava/representava o poeta não deixava de ser verdadeiro. Pelo menos em parte; alguma coisa de verdadeiro haverá em tudo quanto escreve, a não ser que — suponhamos — seja um péssimo poeta; o que, para alguns, é sinónimo de não ser poeta de todo. O mesmo país que se diz ser "um país de poetas" é, afinal, o mesmo onde se não fores um bom poeta, não és um poeta de todo.


Oceano — O Reino das Águas em livraria em Almada.


(iv) «Há muros que só a paciência derruba. E há pontes que só o carinho constrói.» As palavras escritas são como uma grande viagem. O que é que, no teu entender, achas que a (tua) escrita constrói?


Quando te li a citação pela primeira vez, até pensei que te fosses referir ao itinerário dos poetas/escritores de publicação em publicação, ao longo dos anos, no seu contacto com os leitores: da conquista de "público" e de um lugar, seja isso o que for e onde for, que se fará, precisamente, dum misto de paciência e de carinho. Pelo menos, vejo o afecto no trato com quem me lê e segue como indispensáveis para o que quer que seja que construo. Mas não só de paciência e de carinho se fará essa construção. Penso que a autenticidade, a verdade e a personalidade serão igualmente determinantes. Contudo, não foi essa a tua questão, pelo que não me aprofundarei nessa direcção...

se bem que (perdoem-me a mudança de parágrafo; a minúscula com que me inicio já denunciará algum arrependimento) será o afecto, precisamente, uma das coisas que, à primeira vista, a minha escrita constrói (ou construirá; quero acreditar que sim). Não que escreva na busca desse afecto, mas é claro que também escrevo na busca desse afecto. Os artistas são, tendencialmente e por natureza, almas solitárias; mesmo que rodeados de gente e de demónios — só o afecto compensa o abismo da solitude. Sob esse prisma, a minha escrita tem-me trazido o afecto e a proximidade dos leitores que, querendo ou não, dão sentidos àquilo que faço e à minha existência. Não escrevo (par)a ninguém — que é o mesmo que dizer que escrevo (par)a toda a gente. Nesse exercício, é na relação do que vai e do que vem que se sustém ou alimenta o fôlego. Sem esse movimento, a poesia far-se-ia na mesma, acredito, mas com mais azedume e com menos esperança.

Acredito que aquilo que escrevo construa para lá de mim; fa-lo-á necessariamente. Como digo no poema "Aqui" do Telúria, "Crescem-me dos pés os dedos, / como raízes, / estendem-se-me pelos subterrâneos. / Apropriam-se, apoderam-se, / atravessam os oceanos // e as estrofes tectónicas / que m'escrevem e estremecem. Enleiam-se nos dedos de ninguém." Ainda que sozinho no acto da concepção poética, o emaranhado de raízes faz-se, também, entre as raízes dos outros, dos que me lêem. Nunca há, à partida, a garantia de um leitor, mas havendo um... a literatura acontece.

Por mais que qualquer livro seja um diálogo de influências — e os meus têm convocado vozes várias — é bom que acrescente. Essa é uma preocupação (simultaneamente, uma pretensão) minha. A questão da legitimidade para escrever é um debate interno que se faz muitas vezes feroz (fez-se-me assim durante muitos anos). Escrever para fazer mais do mesmo não valerá a pena — não haverá como tornar este discurso menos "peneirento": por isso, a decisão de publicar será sempre, em primeira ou última instância, um acto de arrogância.

Aquilo que a minha escrita construirá temo que não seja bem do meu conhecimento (talvez nem possa ser — ou porque não me diz respeito ou porque não é da natureza do poeta saber desse tipo de concretizações. Do poeta é a esperança. Isso, seguramente).



(v) «Nenhuma vida cabe num poema.» Concordas, discordas e porquê?


Metáforas à parte, dir-te-ei que concordo. A vida é coisa que não cabe em poemas. É doutra complexidade e a grande parte dela nem sequer se traduz por palavras.



(vi) «Quem percorre uma estrada não tem, em geral, a preocupação de conhecer a história geológica das pedras que compõem a calçada que a pavimenta; sucede que procedemos da mesma maneira para o caminho das palavras, atentos apenas à sua função, isto é, aos significados que exprimem. Mas quem possui o interesse desperto e um ouvido apurado consegue uma vez por outra apreender, por detrás da forma e do valor semântico atuais, outros momentos distantes, mais ou menos escondidos, que conferem uma razão àquela forma e àquele valor.» É importante para ti conheceres a geologia das palavras, quer seja a escrever, a ler e/ou a viver?


Claro, absolutamente. Quando cheguei à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que partilhámos em momentos diferentes das nossas vidas, recordo-me da primeira aula da saudosa Teresa Amado e das suas palavras — mais ou menos estas: "Num poema, nenhuma palavra estará ao acaso." Esse foi o dia do contágio, desta doença que começou por ser uma obsessão (capaz de me sabotar o próprio exercício da escrita, tal é a responsabilidade de escolher uma palavra em detrimento doutra) e que hoje é mais como um exercício de amor pelas palavras; este de lhes conhecer, descobrir ou explorar a etimologia e as potencialidades e os horizontes semânticos. Uma das qualidades que mais aprecio num texto é a sua eventual inesgotabilidade. Procuro-a nos meus poemas, dando-lhes as camadas possíveis e que julgo adequadas. Ora, tal seria impossível se me ficasse pelos significados imediatos e mais usados das palavras a que recorro, das quais me sirvo e que me servem. Atentares-te à geologia dos versos será, muito provavelmente, a única forma de comungares, verdadeiramente, da poesia.



(vii) Quando escreves, ofereces aquilo que consegues ou aquilo que os outros podem aceitar?


Se ofereço aquilo que os outros podem aceitar? Aquilo que poderão aceitar ou não não entra na equação da arte que faço, da arte como a entendo. Nesse caso, não seria um artista, seria mais um artífice (se é que me é permitida essa diferenciação, associando o artífice mais como alguém rotinado numa arte mecânica ou num espírito economicista ou, quando muito, em alguém cuja arte cumpre uma finalidade utilitária, com o dever de agrado).

Se ofereço aquilo que consigo? Sim, à letra sim. Gosto de acreditar, no entanto, que me supero, de alguma forma, naquilo que escrevo e que, nesse sentido, serei capaz de entregar algo mais do que aquilo que, à partida e tão-somente, conseguiria. Escrever pode ser um acto de superação e/ou de redondo falhanço. Será bom que aquilo que vai a publicar deva mais à superação do que ao falhanço; ainda que sejam precisas as coisas más para as haver boas.



(*) Nota do entrevistador: as citações presentes no questionário são excertos de algumas passagens literárias ou são frases minhas. A não indicação a quem pertencem é aqui propositada.

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