Crítica ao livro AKBAR — LUNÁRIO POÉTICO DUMA ALMA AINDA ÁRABE (2025), de Nero
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Atualizado: há 15 horas
por Esmeralda Lopes Alves Professora especializada em Língua e Literatura Portuguesa

A portugalidade não pode ser entendida sem a herança que recebemos dos nossos parentes árabes, herança essa que, de tão profunda, ainda permanece e continua a marcar-nos, desde a genética até à língua, facto que trouxe até nós um oriente.
Adalberto Alves, in Portugal e o Islão
INTRODUÇÃO
Não sei se conseguirei transmitir o que a minha alma, também ela ainda árabe, decifrou deste maravilhoso tributo à cidade de Silves e à sua história.
Muitos escritores se têm perguntado, afinal, quem somos nós hoje, povo português, neste território, senão a soma de tantos povos que aqui habitaram desde os primórdios e à qual a história dita “oficial” não tem sido muito grata, nomeadamente a tantos que dedicaram os seus estudos a Silves. Sabendo que o que nos une à cultura árabe tem sido esquecido pelas maiorias académicas, Nero, o nosso poeta, elevou a sua voz para se religar ao que foi a vida quotidiana no Gharb al-Andalus, num período que nos é referido, muitas vezes, por lendas e narrativas de sabor romântico, mais centradas nas diferenças do que nas semelhanças.
Saliente-se que, ao olharmos para trás, constatamos que o ser humano procurou dominar, submeter, estropiar, derrotar o seu semelhante. As manobras e explicações das mesmas revelam uma ausência total de respeito pelo ser humano. E Nero procura, neste seu Lunário Poético duma Alma ainda Árabe, o seu Akbar, devolver-nos o outro lado da História, através de uma viagem no tempo; pelo olhar crítico, mordaz e até desesperado de um sujeito poético que, ao ver a ambição desmedida do Homem que não olha a meios para alcançar os seus intentos, decide, de forma poética, “calçar os sapatos do outro”.
Na verdade, antes dele, outros arabistas ergueram a sua pena, a sua voz, para que não fosse esquecida a permanência árabe em Silves, e nomeio dois estudiosos: um, filho de Silves, o Dr. Garcia Domingues; outro, o Dr. Adalberto Alves que sem ser silvense tanto escreveu sobre a nossa terra. O que hoje temos de ambos encontra-se no Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves — CELAS —; já o espólio do que foi a biblioteca particular do Dr. Garcia Domingues é pertença da autarquia e encontra-se numa sala privada da Biblioteca Municipal de Silves.
Eis o livro de um novo arabista, também ele filho deste concelho, um poeta maior, cuja alma ainda é árabe, diz-nos ele. E a prova está aqui reunida, neste maravilhoso livro, através de um diálogo quase silencioso, também ele dedicado a Silves e a dois nomes sonantes do lirismo luso-árabe: Al’Mutamid e Ibn Ammar. Este é o sopro de um poeta consciente da sua herança cultural e do sangue que lhe corre nas veias. Esta sua obra traz-nos uma lufada de ar fresco, vem refrescar-nos a memória e fazer-nos desejar saber mais sobre as nossas raízes.
Com efeito, todos nós sabemos que os árabes aqui aportaram, conviveram, amaram, se defenderam e sobretudo nos deixaram um legado esplendoroso. Repare-se nos milhares de palavras portuguesas de origem árabe reunidas no dicionário do Dr. Adalberto Alves. Não é por acaso que um poeta árabe disse um dia que “a sabedoria dos Romanos residia no seu cérebro, a dos Indianos na sua imaginação e a dos Árabes na sua língua”; o que parece ter um fundo verosímil. E aqui estamos nós, herdeiros da sabedoria da vida, recolhida desde tempos imemoriais, cuja história, na verdade, corre nas nossas veias — a qual, nem sempre, foi registada com a imparcialidade merecida.
E eu pergunto-me: O que foi fazendo a história sobre esse legado? Olhemos para os programas de História, já para não falar dos filósofos portugueses desconhecidos dos nossos estudantes como António Sérgio, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra e mesmo o filólogo Agostinho da silva.
Enfim, sabendo que o que nos une à cultura árabe tem sido esquecido pelas maiorias académicas, Nero procura nesta obra religar-se ao que foi a vida quotidiana no Gharb al-Andalus. Este nosso poeta, que está na idade do combate, da reflexão e da investigação, vem relembrar-nos quem somos, enquanto portugueses. Tal como ele, também Teixeira de Pascoaes, no passado, procurou explicitar quem somos, escrevendo A arte de ser Português; e Fernando Pessoa, no seu título Sobre Portugal. Também eles poetas, falaram com o coração, com a alma, com as suas entranhas. Nero, herdeiro dessa maneira de olhar o mundo, prenda-nos com um livro de poesia que descreve o passado com o olhar do presente. Dizem os entendidos que em tempos catastróficos se aguçam os sentidos e se escrevem grandes epopeias. (Fernando Pessoa disse-o como último grito da sua obra Mensagem: "É a hora!", dizia ele, de mudança).
Recuando um pouco atrás, lembro-vos que, no decadente final do século XV, também Camões olhou à sua volta e, sem ter sido reconhecido pelos seus contemporâneos, pela homenagem deixada a Portugal na sua obra Os Lusíadas (onde é celebrada a gesta deste povo), vai terminar grande parte dos seus dez cantos com uma farpa aos governadores da época, que não valorizavam a cultura, deixando claro no canto V, na estrofe 97, que «Quem não sabe arte não na estima». E com isto terei dito muito... ou quase nada!

ANÁLISE / CRÍTICA
Akbar é uma obra singular, porque em pleno século XXI, quando o mundo parece desmoronar-se, há um jovem consciente que nos devolve uma parte de nós adormecida e nos obriga a revermo-nos por dentro.
A sua poesia vem questionar o presente sobre o desconhecimento de um legado que parece apenas ser recuperado por escritores, como nos lembra Adalberto Alves no seu livro Portugal e o Islão, onde é dito que há na poesia dos trovadores medievais uma forte contaminação de influência árabe; o que não parece ter sido aceite por alguns eminentes estudiosos do século passado (cf. p. 73). Se fizermos um percurso pelas páginas deste livro, encontraremos um aturado e elegante estudo da poética de influência arábica (O meu coração é árabe). E o arabista recolhe poesia de diversos autores, em particular do século passado, sem descurar o século XVIII, com Bocage ou Marquesa de Alorna, e o século XIX, com Eça de Queirós, para desaguar no século XX; falo, por exemplo, de Natália Correia, com o brilhante poema «As hispérides são moças algarvias». Deixo uma última referência: Fernando Pessoa com o seu heterónimo Alberto Caeiro, num opúsculo de Fabrizio Boscaglia «Considerações sobre a presença do arábico-islâmico no neo-paganismo de Fernando Pessoa» (apresentado em 2015, no CELAS em Silves).
Como se pode ver, ao longo dos tempos, grandes nomes da cultura portuguesa procuraram entender quem eram. É, pois, esse olhar de reconhecimento pelo que não ficou dito pela história oficial o que Nero aqui nos deixa, neste livro, um marco na literatura do século XXI.
Ainda que não seja um tratado de História, é também de História que trata esta obra; saibamos nós, leitores, dialogar com o passado que ela aqui nos deixa. Essa é a proposta. Não é de hoje o desejo de identificarmos as nossas raízes, ou até mesmo questões metafísicas como: de onde venho, o que faço aqui e para onde vou. Caberia aqui entrarmos pela filosofia sufi, mas Nero deixa-nos isso, de forma lapidar, nos quatro interstícios lunares desta obra. Foquemo-nos neste cântico árabe, no qual somos convidados a observar os outros com um olhar fraterno — esse é o desafio de um poeta que se busca a si próprio pela descoberta do outro.
Assim, o autor dividiu a sua obra em quatro fases lunares. A sinopse avança «uma viagem às origens e à expansão da fé islâmica, numa espécie de toada simbólica e mística» em quarto crescente. Depois, no plenilúnio, ou lua cheia, celebra com fervor popular a expansão árabe pela Ibéria. Em seguida, recuperando o tom épico, recria episódios históricos da queda do império muçulmano, agora numa lua de quarto minguante. Por fim, propõe o diálogo e o silêncio como instrumentos essenciais ao perdão e à tolerância de que, como diz, se fazem as luas novas de qualquer idade.
Pela força das suas palavras, confesso que, a princípio, me senti surpreendida pela profundidade e dimensão complexa de uma obra carregada de referências culturais, históricas. Mas não desisti! A surpresa que me assolou foi tida como um desafio. E, ao chegar ao poema intitulado "4ª noite sibilante" (p. 56), que se inicia pelo verso "um poema ilegível até certa altura"", dei comigo a desejar voltar a reler todos os poemas até àquele momento. E lancei outro olhar ao que já tinha lido, para então continuar a minha viagem peregrina pela leitura da sua poética desafiante.
O Islão surgiu-me sob dois prismas: uma visão poética de Nero, mais ideológica e intelectualizada pela escrita, e uma outra, considerada vivencial entre os povos, numa "vivência historicista"; porém, ambas religadas ao cosmos, digamos na sua religiosidade possível, onde o sujeito poético parece contrapor a "imensidão do cosmos" — o firmamento — à condição humana, em que tudo parece instável, ainda que os corpos sejam, como refere, «firmes», apenas em «órbitas instáveis, sujeitas ao silêncio e à mudança — linha subterrânea deste livro.
Aqui, poder-se-ia acrescentar uma certa visão orientalista que o ocidente foi construindo nas suas narrativas sobre o oriente; visões essas que, ao longo dos tempos, tanto elevaram como corromperam. Há momentos poéticos onde inevitavelmente estão presentes a guerra e a paz, como se o caminho para alcançar esta última fosse uma ilusão.
Fui percorrendo o livro, página a página, já numa segunda leitura, para me afeiçoar ao seu timbre acidulado. E garanto-vos: fui-me enamorando desta poética (que me fez pensar em Herberto Hélder, que não se deixava ler num primeiro andamento).
Perpassa, também, nesta obra, aqui e acolá, uma certa descrença no teísmo, no divino, que parece abandonar as causas imperiosas dos homens que quase ficam abandonados à sua sorte. E aqui veio-me à lembrança uns versos de Camões “Correm turvas as águas deste rio / […] O mundo […] anda tão confuso / que parece que dele Deus se esquece”.
Neste âmbito, Nero descreve-nos a submissão dos humildes que encontram consolo na religião; misturam-se revoltas e preces, enquanto os guias espirituais ou políticos acabam por destruir o que deveria florescer. Alguns poemas são, com efeito, um retrato sombrio de um mundo onde o poder parece construir-se sobre a negação da espiritualidade, diríamos mesmo, na ausência do amor. De certo modo, Nero leva-nos a encarar a fé como uma ferramenta de consolo, sobretudo instrumentalizada para manter as massas submissas — foi o que me sugeriu a expressão final do poema "5ª noite sibilante" (p. 57), poema que abre com o verso "O império forjado na recusa". Refere-se o último verso à “infernal máquina humana”.
Saltemos agora para a “lua cheia” e, como não podia deixar de ser, à ode de Nero a Silves. Deixo uma nota de que se trata de uma verdadeira celebração da história de Silves e da sua identidade, marcada pela fusão de culturas, pela natureza imponente e pela resistência ao tempo.
"Ó ruiva terra, terra-sangue", poderosíssima imagem desta cidade, retrato de sofrimento e dureza na caminhada histórica. Trata-se de uma terra fértil, vivenciada por ganhos e perdas, que encontrou a sua regeneração, que metaforicamente se poderá retirar do turvo rio torneando férteis margens, cujo curso poderá representar a inevitabilidade da passagem do tempo. As suas margens transbordantes atestam o poder da natureza e os desafios de lidar com o imenso fluxo da história e da cultura que definem esta cidade. O poeta vê incrustada no corpo da cidade as marcas do destino de um povo na sua diáspora humana, e que parece assentar num jogo entre a sorte e a vontade, ou seja, a dicotomia entre o destino e o livre arbítrio. Este ditará a forma como os homens procuram e procuraram conviver, já que Silves foi palco desse convívio. Por isso, o sujeito poético nos diz “Enquanto há noite, enquanto há luz”, o que sugere a resistência e a adaptação da cidade ao longo do tempo. E acrescenta, ainda “O amor cruzando cos vândalos / às poentes línguas do Andalus”, onde o amor é o pilar sob o qual assenta e assentará qualquer convivência cultural que atravesse fronteiras. E, se repararmos, Silves, ainda no presente, assume essa postura num encontro de culturas. E, nesta obra, pressente-se tudo isso como uma reverência pelo passado, emoldurada nas lendas que aprendemos na escola ou olhando para as ruínas que nos cercam.
Um outro poema, “Mostra a Língua, mouro são”, surge-nos denso e provocador. Aqui, a língua assume o seu poder de identidade, resistência e subversão; no qual o poeta articula questões de fé, opressão e resistência cultural. E a repetição deste verso, ao longo do poema, apontará em dois sentidos: a opressão e a marginalização, por um lado, e, ao mesmo tempo, a libertação ou ascensão através da própria palavra.
Em seguida, aportei ao poema, “Emanação”, dedicado ao arabista Adalberto Alves, numa atmosfera de melancolia e contemplação, onde a memória e a identidade cultural emergem através de imagens sensoriais intensas. Eis que os perfumes da noite fazem o poeta descer ao mundo dos sentidos, abandono do divino; já que isso o descentra! Mas os “versos serpenteando murmúrios” trazem memórias da poética árabe-andaluza, como se anunciassem uma nova consciência, que será desperta pelas mãos do poeta que traz algo de sagrado na sua poesia que acaba por iluminar o espírito e por fazer nascer novos mundos, novas realidades, como se quisesse acordar os homens dessa letargia de indiferença em que Portugal se deixou adormecer. Esquecimento? Indiferença? Cegueira? Diz ele: "ignorando todas as lágrimas inscritas / na alma, que nos lapidam a finitude". E o poema termina questionando o papel da poesia e o seu dom magnânimo de lancetar o presente, libertando-o do azar do verbo; pois outrora as estrelas guiavam o homem e hoje, no poema, é dito que as estrelas são reflexos, espelham a dolorosa realidade que fere o braço que teima em elevar-se pelo verbo explosivo, qual Fénix renascida.
Na viagem da minha leitura, encontro o poema “Manejo”. E estamos perante o que poderia ser um presságio de traição entre dois seres, “espetou-lhe um beijo” — despedida amarga! entre dois seres, entre os quais teria existido cumplicidade e fidelidade que o cárcere haveria de trair; não obstante, a poesia falará sempre mais alto, já que “Ser poeta é ser guerreiro” e não “prisioneiro”, como refere o poeta.
Continuarei na senda lunática desta peregrinação pelo poema "OVO". Temos aqui o poeta explorador, em diálogo com uma filosofia existencial, que se alimenta de um símbolo poderoso: o ovo como origem, potenciador de vida, de criação. Como se a poesia fosse um renascer das cinzas, dando continuidade à vida, no sentido da evolução pela transformação.
Há um jogo sonoro e estético no seio deste poema, num ritmo sinuoso, quase hipnótico, reforçado por palavras raras e construções inesperadas, a que o leitor ter-se-á de habituar. É com poesia deste grau que se descobre um mundo de hipóteses. E isto é também conseguido através da musicalidade consagrada pelo contraste entre o concreto e o abstrato (exemplo: “treliçadas na boca da pedra” ou “precisando deus na repetição”). Ainda é visível uma oposição entre a ordem e o caos, já que, ao longo dos versos, nos deparamos com um embate entre formas organizadas como "tesselantes", "iguais" e caóticas como "a simetria lícita do transtorno".. E esta oscilação pode refletir a tensão entre destino e acaso, estrutura e desconstrução, razão e emoção.
Desde o início desta leitura que nos vamos deparando com momentos altos de reflexão sobre a Humanidade e o divino. E, aqui, o poema parece questionar o papel do homem na criação e na perceção desse mundo. Nota-se uma constante referência à presença do divino, como se a criação de Deus fosse um padrão geométrico, um mosaico de formas que se repetem. E o poema oferece-nos um final filosófico, traçando o papel de um poeta que reflete sobre a realidade e a arte, onde a pergunta "Que dia vero vale sem a noite?" parece reforçar a ideia de que os opostos se complementam. O mundo é observado pelo poema, e o eu lírico assume o papel de criador: com efeito, a realidade não existe sem a interpretação artística; aqui, na sua densa sofisticação, onde se cruza a abstração filosófica com imagens concretas e, ao mesmo tempo, simbólicas, explorando a relação entre criação, perceção e ordem no caos. Foi o poema mais difícil de penetrar!
Breve notas sobre outros poemas
"Divindade" (p. 38)
O verso livre, a ausência de rima fixa ou de métrica rigorosa, reflete a temática da liberdade, particularmente no sentido espiritual e intelectual. Porém, a clareza fortifica o significado ao engrandecer a relação entre poesia, fé e liberdade. Versos curtos, escritos da direita para a esquerda à maneira árabe, como tantos outros, com uma estrutura fragmentada, o que acaba por criar um ritmo contemplativo, quase filosófico.
Este poema chega-nos como Criação e Interpretação e a escrita é encarada como um ato criativo, onde o poeta "julga, inventa e profeta", como se a poesia tivesse não só o poder criador mas também a força de vaticinar.
O poema questiona ainda a ideia de uma única verdade absoluta, sugerindo que a crença num Deus "único e verdadeiro" acaba por encerrar dentro de si a "verdade" e a "mentira" das restantes crenças.
O último verso destaca a felicidade daquele que vive a sua espiritualidade de forma livre, sem se prender a dogmas ou imposições. E, ao usar a primeira pessoa, assume a sua visão, distanciando-se dos outros, num tom pessoal e autêntico, conduzindo à reflexão, tornando-a mais poderosa! O poema desafia dogmas religiosos, sem necessariamente negar a espiritualidade. Em vez disso, valoriza a liberdade de crença e sugere que a fé deveria ser uma escolha individual, não uma obrigação. O tom final é de celebração dessa liberdade, reforçado pela expressão “Feliz daquele, / como eu, / que livre vive a divindade”. Assim faz nascer um paradoxo e, ao deixar-nos a ideia de um Deus que contém tanto "a verdade" quanto "a mentira de todos os outros", desafia conceitos tradicionais de religiosidade. E veja-se aqui uma vontade ecuménica nesta repetição; como se se tratasse de um jogo "Seguir um / ou seguir outro / ou seguir todos", o que reforça o desejo de liberdade.
"Beijo-Lua" (p. 121)
Este poema tem uma carga simbólica intensa e uma musicalidade que evoca a poesia mística e existencial, com o seu ritmo fluido, quase meditativo. Há uma combinação de imagens fortes e abstratas, o que reforça um caráter introspetivo e filosófico. A pontuação escassa e o recurso ao encadeamento (enjambements) dão-nos a sensação de continuidade e expansão, como se o pensamento do eu lírico fluísse sem barreiras.
A melancolia do poema propicia a reflexão meditativa. A ideia de um beijo na melancolia sugere um contacto íntimo com a tristeza, mas também com a beleza intrínseca a esse estado, potenciador da união entre o humano e o divino, conferido pelo termo "teândricas"; como nos é sugerida uma fusão entre o terreno e o transcendente, falamos de espiritualidade, ou seja, de busca de um significado para a vida, através de uma ligação a algo superior, como Deus, o universo ou a nossa essência interior. É uma experiência pessoal que transcende a materialidade, ou seja, a metafísica. É disso que este poema nos parece falar; pelas expressões "viagem alvorecida na ignorância" e "adiar do oxigénio", as quais remetem para um percurso de autodescoberta, onde a falta de conhecimento inicial é parte do caminho para a iluminação.
Entrando um pouco na parte estilística do poema, dir-se-ia que também nele se volta a abordar a “premonição do verbo” e a "queda e ascensão dos versos imortais", sugerindo que a poesia tem um papel quase profético e eterno. Mas, aqui, o sujeito poético vai mais longe com a imagem dos lábios que selam "artóforos" (recipientes sagrados para a Eucaristia), reforçando um caráter espiritual e ritualístico do beijo. Ele não é apenas um gesto físico, mas um elo transcendental.
O simbolismo da lua, no final, representa um sorriso, mas também sugere ciclos, incertezas e a reflexão sobre a existência. Ela liga-se às emoções, à interiorização, exigindo talvez uma leitura mais intimista, encerrando o poema com essa nota de que o mais importante é a harmonia e a conexão universal, para banir as feridas, chagas abertas de há séculos. E isso será alcançado pelo encontro entre o humano e o divino, na transitoriedade da vida e na permanência da palavra poética.
"Alquimia" (p. 146)
Este poema carrega um forte pendor simbólico e filosófico, evocando a transformação, a destruição e a busca do equilíbrio.
Do ponto de vista estilístico, o que se disse de um, aplica-se à grande maioria. Uma composição de versos livres, com variações de extensão, que conferem um ritmo dinâmico e reflexivo. Há encadeamentos que reforçam a fluidez do pensamento e a pontuação confere ênfase a certos excertos, como no verso isolado "(chagas abertas, difíceis de curar)", que causa um impacto visual e sonoro.
Assolam este poema preocupações como a da impermanência da História e a da imutabilidade do poder: os versos "imutáveis são as palavras que se quiserem, / mas imutáveis não são os feitos e desfeitos" trazem-nos à ideia a noção de que a linguagem até pode parecer eterna; contudo, os atos humanos são mutáveis e sujeitos a transformação. A referência às "aves de olhos faiscantes" é uma possível metáfora para líderes autoritários ou mesmo para o ego humano que se eleva de forma destrutiva — figuras arrogantes que se elevam acima dos outros, julgando-se divinas, mas que acabam por causar destruição.
Identificamos ainda a ruína e o renascimento: "e altas torres desmoronam / e alguns símbolos, / mas não o Amor às coisas certas." Expressão que nos remete para um processo histórico ou metafísico onde tudo pode ruir, exceto os valores essenciais. "assim, das cinzas, / novos símbolos putrificam" — nova metáfora, aqui visível no jogo de opostos: normalmente, esperamos que algo renasça das cinzas; porém, os "novos símbolos" já surgem deteriorados, abrindo uma crítica à natureza cíclica de destruição e corrupção. (Nada atual!). Juntemos ainda a dor da transformação, a partir do momento em que o poema reconhece que para criar ordem muitas vezes é preciso "espalhar e destruir", mas alerta para os limites desse processo, pois "Não passam as soluções / por cavar feridas." Eis um fecho poderoso que sintetiza a crítica à destruição sem propósito ou sem equilíbrio. Repare-se como o simbólico título "Alquimia" sugere transformação e equilíbrio. A alquimia tradicional busca a transmutação do chumbo em ouro, assim como, metaforicamente, representará a transformação espiritual e filosófica. O poema parece dizer que a verdadeira transformação não pode acontecer pela destruição desenfreada, mas sim pelo equilíbrio da balança.
Por fim, dizer que este é mais um poema forte e profundamente filosófico onde, num tom quase profético e reflexivo, se questionam os ciclos de poder, de destruição e de reconstrução da humanidade. O final traz uma advertência sábia: a transformação precisa de equilíbrio e não pode ser construída sobre feridas abertas.
"Lunação" (p. 150)
A escolha de versos curtos e imagens bem definidas gera um contraste entre o movimento da mente e a serenidade do ser. Há um equilíbrio entre ação e pausa, entre "encher" e "esvaziar", sugerindo um movimento cíclico de introspeção e ação. Neste poema, encontramos aqui um desejo de transformação em direção ao autoconhecimento: "é viver orar à transparência, / dizer adeus à exigência / de ser o que se não é." Procurará o poema sugerir a libertação das expectativas e das construções impostas, em busca da autenticidade? Uma vez que a "transparência" é aqui um símbolo de clareza e verdade e o "adeus à exigência" reflete um ato de liberdade pessoal. "Descer a montanha, a pé, / constatar o reflexo no lago / e progredir," metáfora cujo movimento de descida pode ser visto como um caminho de humildade, de olhar para si mesmo e, a partir disso, evoluir. A imagem do lago reflete a ideia de autoconhecimento e reflexão. Rever-se nas águas de um lago foi muitas vezes associado à autocontemplação, enquanto oportunidade para a revelação, poder criativo e místico em direção à transformação e evolução. Quando é referido: "às vezes, enchendo, / outras vezes, esvaziando”, sugere-se que o processo de evolução não é linear, mas cíclico, com momentos de crescimento e de desconstrução. Esta dualidade é um dos pontos centrais do poema, refletindo as incertezas e os contrastes da vida.
E temos ainda a representatividade do número oito, com a sua simbologia de infinito: "é as oito pontas unir, / o elefante remontar", metáfora onde as "oito pontas" podem simbolizar o equilíbrio, o infinito ou o ciclo da vida, e o "elefante" metáfora de força, sabedoria e estabilidade. A ideia de remontá-lo pode ser interpretada como restaurar a integridade ou o equilíbrio interior, estado sine qua non o poder de regência não é alcançado nem materializado.
O poema entrega-se ainda à busca pela Essência, do divino e do Silêncio: "é Deus o maior / (como, se o dizem único?) / nas suas idiossincrasias, / nas suas contradições". Suspeita-se aqui haver uma crítica ao entendimento humano da divindade, como algo único ou absoluto. O poeta sugere que Deus é, de facto, múltiplo e contraditório, uma entidade que transcende definições rígidas. "há-de extinguir-se, / ou continuar, / quando o Silêncio, a sós, / imperar"; note-se o Silêncio enquanto símbolo poderoso neste contexto para se alcançar um estado de transcendência e pureza em que talvez a verdadeira essência se revele. Saber-se-á como? Talvez pela compreensão, pela aceitação do "não saber" ou da unidade com o todo. Aponta o poema para o Ciclo e para a Eternidade, ao dizer, por fim: «quando o Silêncio, a sós / imperar. // ou não, / nunca há-de acabar". Sugere-se uma reflexão sobre a continuidade do ciclo, da vida e do ser. A permanência ou a transformação do divino, da alma humana ou da própria natureza da existência permanece em aberto.
"Lunação" é um poema que, com a sua fluidez e as suas imagens poderosas, reflete sobre o processo de autoconhecimento, transformação e o alcance da essência divina e humana. O poema sugere que a verdadeira sabedoria reside na aceitação das contradições e na busca constante pelo equilíbrio, não por meio da imposição, mas pela harmonia entre os ciclos de "encher" e "esvaziar". O poema é profundo e meditativo, com uma qualidade quase mística, como uma jornada para o centro do ser. Produz uma sensação de transcendência que dialoga com filosofias orientais e ocidentais, refletindo sobre a natureza do divino e do silêncio interior.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Termino, dizendo que há, nesta obra, um forte sentido de pertença, como se Nero tivesse a missão de resgatar a identidade de um povo. E não nos esqueçamos de que qualquer obra, qualquer escrito, será sempre um diálogo, subtil ou não, com os nossos contextos, com o quotidiano real, com as nossas leituras, com as nossas introspeções. Aqui entra o poder influenciador da lua e, em particular, da aventura iniciática que Akbar — Lunário Poético duma Alma ainda Árabe propõe. É uma espécie de chamamento a todos e a cada um de nós, como se a leitura fosse uma espécie de oração ou de louvor no sentido de nos religarmos com o nosso eu interior, com a nossa essência; ou seja, com a nossa alma — descobrindo, em cada verso, o que os nossos olhos possam alcançar.
Um poeta disse um dia que nada do que escreve é seu. Nada lhe pertence! Acabamos por reescrever os sentidos da vida, onde cabem “os meus e os dos outros”, como está bem claro em Akbar. Esta obra já não pertence ao poeta... Será agora de cada um de nós, guiados pela ânsia de nos descobrirmos. Fica o testemunho do amor que Nero dedicou a esta sua obra — uma homenagem à nossa história, vista pelos olhos duma alma ainda árabe
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Não esqueçamos que Nero anunciou Telúria (2023) como o primeiro desta trilogia maior [a denominada "Trilogia do Espírito"], sendo Akbar a sua continuidade — ou seja, o seu périplo interior pelas raízes deste povo português, sem deixarmos de ser quem somos ou quem viemos ser. Insisto que um escritor nunca acaba de escrever um livro; o livro da vida compõe-se de muitos livros, muitas lições, sempre em busca de um caminho, num diálogo permanente entre cada um, como o poeta deixou claro, algures, numa entrevista.
Enquanto aguardamos pelo último volume da trilogia, dediquemo-nos à leitura deste Akbar — Lunário Poético duma Alma ainda Árabe.
[a partir da comunicação lida pela própria autora no evento de lançamento do livro, a 5 de abril de 2025, no Café Inglês, em Silves]

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